Espiritualidade: A genética da fé
(Por Carla Aranha. Revista Super Interessante, março
2006)
O biólogo americano Dean Hamer causa polêmica com sua
tese de que o código genético de uma pessoa determina o tamanho de sua fé. Mas,
afinal, de onde vem a espiritualidade e para que ela serve?
Você às vezes sente uma conexão intensa com todos à
sua volta (e não só quando exagerou na bebida ou está desfilando na Salgueiro)?
Também tem um forte sexto sentido, acredita em milagres e ama sentir o perfume
das flores? Sim? Então, parabéns: você é um ser altamente espiritualizado – ao
menos segundo os parâmetros do biólogo americano Dean Hamer, doutor pela
Universidade de Harvard e autor do polêmico O Gene de Deus (Mercuryo, 2005),
que vem provocando debates no mundo todo.
As perguntas anteriores fazem parte de um
questionário criado pelo psiquiatra americano Robert Cloninger, da Universidade
de Washington, e utilizado por Hamer para medir o grau de espiritualidade de
1001 voluntários que participaram das pesquisas que deram origem ao seu mais
recente estudo. A partir das respostas obtidas, Hamer separou as pessoas que
tinham uma pontuação maior ou menor e estudou as diferenças genéticas entre os
grupos. Ele acredita ter descoberto um conjunto de genes que tornaria o ser
humano predisposto a ter experiências sensoriais, como acreditar em Deus e professar
uma religião. Em seu estudo, o biólogo apregoa com todas as letras que o código
genético do indivíduo determina o tamanho da sua fé.
Pronto. Estava lançada uma das maiores controvérsias
dos últimos tempos. Seu ponto nevrálgico é que, para antropólogos, filósofos e
psicanalistas que estudam o tema, a biologia não é capaz de explicar algo
complexo como a fé, e muito menos um questionário teria condição de medir o
grau de espiritualidade. Para início de conversa, dizem esses estudiosos, a
própria definição de fé não é tão simples como pode parecer à primeira vista.
“Existe a crença em Deus, que todo mundo conhece, e
também o que chamamos de ‘fé antropológica’, que é a esperança depositada na
evolução do espírito humano ou em conceitos como a democracia e a justiça
social”, diz Antônio Carlos Magalhães, coordenador de pós-graduação de ciências
da religião da Universidade Metodista, de São Bernardo do Campo (SP).
“Nesse sentido, a crença é algo inerente ao ser
humano, quer você acredite ou não em Deus. Não podemos esquecer que uma pessoa
pode ser ateia e mesmo assim ter essa fé antropológica”, afirma. Segundo
Magalhães, querer estudar esse fenômeno com parâmetros matemáticos da ciência
provavelmente não vai levar a lugar algum. “Não sou biólogo e não posso julgar
trabalhos nessa área, mas existe um consenso de que a espiritualidade tem
explicações culturais e psicológicas, e não da ordem da biologia”, diz.
Ciência e espiritualidade
Outros especialistas são menos cautelosos e criticam,
para valer, a intromissão da ciência no mundo espiritual. “Estamos falando de
um fenômeno social, de algo que foi construído pelo homem, e quem não enxerga
isso fica nadando na superfície ou, quem sabe, é movido por outros interesses”,
critica Eric Gans, linguista e editor do jornal de antropologia da Universidade
da Califórnia, um dos maiores especialistas do mundo em estudos da religião.
Ele sabe do que está falando. Os Estados Unidos são líderes em número de
pesquisas que tentam ligar ciência e espiritualidade.
Magnatas americanos religiosos vêm destinando milhões
de dólares a estudos que buscam provar que o homem é programado para acreditar
em Deus. O milionário John Templeton, de 92 anos, é um dos que financiam essas
pesquisas – destina cerca de 40 milhões de dólares todos os anos a
profissionais e instituições que aceitam a tarefa. Mas dentro do próprio país e
no meio médico, há quem erga a voz contra essa onda. “A ciência é uma
disciplina que demanda medições precisas de fenômenos, e as dimensões da
consciência humana não podem ser medidas dessa forma”, afirma o médico Jerome
Groopman, um defensor de explicações mais humanistas para o funcionamento da
mente.
Groopman é apoiado por antropólogos, psicólogos e
filósofos. Para esses profissionais, a fé, no além ou em nós mesmos, é uma
construção da mente, algo extremamente ligado ao próprio desenvolvimento do
homem. Sem a invenção da linguagem, por exemplo, sustentam esses especialistas,
a espiritualidade não poderia existir. Para complicar, os antropólogos
acreditam que tanto a fala quanto a fé e sua representação por meio de rituais
teriam surgido ao mesmo tempo. “Afinal, a espiritualidade, que é algo abstrato,
não poderia ter aparecido sem que houvesse um sistema de códigos para
expressá-la, ou seja, a linguagem”, diz Gans. Na ótica da antropologia, a
linguagem e a fé fazem parte da condição humana – sem elas o homem não seria
homem. Se a espiritualidade tem uma explicação genética, a fala também
precisaria ter.
Enquanto isso, continuam os estudos que investigam a
fundo os meandros da espiritualidade, chave para se entender o funcionamento da
mente humana. Para a psicologia, a crença no eterno serviu, desde os
primórdios, para que o homem superasse alguns conflitos dramáticos e pudesse
seguir em frente. Forças maléficas presentes em todos nós, como o instinto
assassino e a rivalidade, seriam de alguma forma controladas pela experiência
mística. É essa a visão da psicanálise sobre a fé.
Sentimento de culpa
Para os
psicólogos modernos, a
espiritualidade também foi um bom canal para o homem desaguar a culpa
inconsciente causada por sentimentos como a inveja ou o desejo de ter a mãe ou
o pai só para si. “Essas culpas, difusas e sem rosto por não serem conscientes,
podiam gerar uma grande angústia, capaz até de tornar o homem inapto para o
trabalho. Era preciso transformá-la em algo palpável”, afirma o psicanalista
francês Jean-Paul Kornobis, da Sociedade de Psicanálise da França. Colocar esse
medo primitivo e sem forma no temor a Deus – ou ao Diabo – é um jeito, segundo
Kornobis, de controlar um sentimento que, caso contrário, poderia ser altamente
paralisante para a espécie humana. “O homem foi encontrando maneiras de
contornar suas piores idiossincrasias”, diz o psicanalista.
Na visão
dos filósofos, o mais importante é
que a conexão com o plano etéreo alivia o medo da morte, que seria a maior
fonte de angústia do ser humano. A crença em Deus ajudaria o homem a seguir
adiante sem gastar muita energia se preocupando com o momento derradeiro de sua
existência. “A fé religiosa oferece certamente esse conforto, além de agregar
as pessoas, por meio dos cultos, e fazer com que não se sintam sós”, diz o
teólogo e filósofo Deitmar Regensburger, da Universidade de Innsbruck, na
Áustria. Ele enumera outras vantagens proporcionadas pela espiritualidade.
A criação de uma ética válida para toda a comunidade,
de leis e de regras de conduta que estipulavam até a punição para o
defloramento de uma virgem – mesmo quando ele fosse consensual – seriam algumas
das conseqüências práticas no dia-a-dia de se ter uma crença comum no plano
espiritual. É só lembrar dos Dez Mandamentos e dos parâmetros para a vida em
sociedade obedecidos por milhares de judeus, unidos sob a crença no mesmo Deus.
“Claro que, se não fosse pela fé, talvez não tivéssemos conseguido viver
harmoniosamente e dar prosseguimento a nossa espécie, mas para mim ela vem do
campo emocional, e como tal não pode ser explicado pela genética”, afirma
Regensburger.
O exercício da espiritualidade, dizem os
especialistas, também acabou por reforçar conceitos como a solidariedade,
fornecendo mais um mecanismo para o homem viver bem em sociedade. “Ao dividir o
corpo de Cristo entre todos, por exemplo, com a hóstia, o homem divide
simbolicamente a comida em vez de cair matando em cima dela”, diz o lingüista
Gans.
A química do transe espiritual
Neurologista procura Deus no cérebro de religiosos em
momentos de intensa devoção.
Para o neurologista americano Andrew Newberg, da Universidade
da Pensilvânia, Deus está no cérebro. “Minhas pesquisas indicam que o único
modo de compreender o Criador é por meio da química dos neurônios”, afirma. Em
2001, ele revelou os mecanismos da mente humana nos momentos de entrega
espiritual. Por meio de tomografia computadorizada, examinou o funcionamento do
cérebro de monges budistas em meditação e de freiras católicas durante suas
preces.
No momento do transe, a área do cérebro responsável
pelo sentido de orientação tem sua atividade reduzida, daí a sensação de
desligamento com o corpo relatada por quem passa por profundas experiências
espirituais. É o que contam sentir os religiosos que passam por experiências
sensoriais. “No momento de uma longa prece, sinto um aquietar da mente, uma
sensação de paz interior e elevação espiritual. E também um sentimento de
plenitude, como se a presença do Criador estivesse permeando meu ser”, relatou
uma freira americana que participou das pesquisas.
Segundo o neurologista, ao estudar a mecânica do
cérebro durante os processos de meditação e transe, os cientistas pretendem
compreender como as experiências religiosas afetam a psicologia e a saúde do
homem. O modelo de funcionamento cerebral poderá explicar, por exemplo, por que
as pessoas habituadas a meditar – ou rezar – geralmente não sofrem de
depressão, têm pressão normal, baixa incidência de ataque cardíaco e pouca
ansiedade.
"Nós não entendemos Deus. Nós o sentimos"
Para Dean Hamer, todos nós –incluindo os ateus –
nascemos com o gene da espiritualidade.
O geneticista americano Dean Hamer, do Instituto
Nacional do Câncer dos Estados Unidos, vem se especializando em provocar
polêmicas – e das grandes. A mais nova ousadia de Hamer foi transportar a
genética para o campo da fé. No livro O Gene de Deus, publicado nos Estados
Unidos em 2004 e no Brasil no ano passado, o cientista afirma ter descoberto um
conjunto de genes que deixaria as pessoas predispostas à espiritualidade. A
comunidade acadêmica em peso se levantou contra Hamer.
Alheio às críticas, o cientista diz só ter um
ressentimento: não ser carioca, não morar no Brasil e não poder surfar todos os
dias. Nesta entrevista a EMOÇÃO E INTELIGÊNCIA, ele conta que é apaixonado pelo
Rio de Janeiro e por surfe, tanto que filmou aqui no ano passado o
curta-metragem Favela Rocinha Bodyboarders, sem previsão de exibição no Brasil.
“Vocês têm tudo, foram abençoados por Deus e pela genética”, brinca ao final do
bate-papo.
De onde
veio a idéia de que a fé teria uma explicação biológica?
Tudo começou com um estudo sobre preferências e
traços de personalidade de fumantes que estávamos fazendo no Instituto Nacional
do Câncer. Acabamos ouvindo muitas pessoas, para detectar a relação entre
tabagismo e personalidade. Algumas perguntas eram sobre espiritualidade.
Detectamos várias pessoas com o mesmo grau de espiritualidade e resolvi estudar
o assunto. Analisamos seqüências de genes de 1001 pessoas e descobrimos um
grupo deles, batizado de VMAT2, o Gene de Deus, responsável pelo funcionamento
de substâncias químicas que levam o homem a transcender o cotidiano e se sentir
mais em contato com o plano espiritual.
Como assim?
Estou falando das monoaminas, um grupo de substâncias
que engloba, por exemplo, a dopamina e a adrenalina, excitantes naturais, e a
serotonina, responsável pela sensação de prazer. As monoaminas também têm papel
fundamental na construção da realidade, são elas que dão significado às nossas
experiências. O VMAT2 regula as monoaminas e ajuda a determinar como percebemos
as alterações da consciência que acontecem, por exemplo, durante transe
religioso ou meditação. Somos não só programados geneticamente para sentir
alegria, mas para ter experiências místicas. Há variações desse grupo de genes,
por isso algumas pessoas são mais espiritualizadas e outras, menos. A
constituição genética de uma pessoa tem papel definitivo na determinação do
grau de espiritualidade. Nós não entendemos Deus. Nós o sentimos.
Mas onde
entra a história de vida de cada um, a educação, o meio ambiente?
Não digo que esses elementos não sejam importantes,
mas a genética é a base de tudo, ela é determinante. Também não podemos
esquecer que a fé, acionada por esse circuito genético, facilitou a
sobrevivência do ser humano nos primórdios da humanidade. A religião também
ajudou as sociedades a se organizar, a obedecer a determinados preceitos, a
evoluir, em suma, a garantir a perpetuação da espécie humana. E isso sem dúvida
se deve à genética.
Antropólogos,
teólogos e psicólogos acreditam que a fé e a religião são construções
culturais, que nasceram junto com a criação da linguagem. Como o senhor vê essa
questão?
O problema é que até hoje não se tinha pesquisado o
código genético com o enfoque de se descobrir por que o homem tem fé. Então,
ainda sabemos pouco sobre isso. Talvez exista um gene da linguagem. Não
acredito que só a genética explique a religiosidade, mas com certeza ela tem um
papel muito importante.
E os ateus,
eles não teriam o gene VMAT2?
Todos nascemos com ele e temos a predisposição à
espiritualidade. Mas exercemos essa capacidade, ou não.
TESTE: Meça a sua espiritualidade
No questionário a seguir, criado pelo psiquiatra americano Robert Cloninger, assinale verdadeiro (V) ou falso (F). Some um ponto para cada afirmação verdadeira e confira o seu grau de espiritualidade:
1. Costumo me sentir conectado às pessoas ao meu redor
V ( ) F ( )
2. Empenho-me em proteger o planeta, os animais e as plantas em extinção
V ( ) F ( )
3. Tenho fascínio por muitas coisas que podem ser explicadas cientificamente
V ( ) F ( )
4. Costumo ter revelações e insights quando estou relaxado
V ( ) F ( )
5. Me sinto conectado à natureza da qual tudo parece fazer parte, como se fosse um único organismo vivo
V ( ) F ( )
6. Sinto que tenho um sexto sentido
V ( ) F ( )
7. Às vezes sinto como se fizesse parte de uma estrutura sem fronteira entre espaço e tempo
V ( ) F ( )
8. Muita gente me chama de “mente ausente”, pois me envolvo tanto no que faço que me esqueço do resto
V ( ) F ( )
9. Costumo ter uma forte sensação de unicidade com as coisas que me rodeiam
V ( ) F ( )
10. Aprendi a confiar mais nos meus instintos do que na lógica
V ( ) F ( )
11. Sinto uma conexão espiritual forte com todos que me rodeiam
V ( ) F ( )
12. Quando me concentro em algo, perco a noção do tempo
V ( ) F ( )
13. Fiz sacrifícios pessoais para fazer do mundo um lugar melhor
V ( ) F ( )
14. Tive experiências que deixaram claro o meu papel na vida
V ( ) F ( )
15. Acredito já ter tido uma percepção extra-sensorial
V ( ) F ( )
16. Em momentos de alegria, tive a sensação profunda de unicidade com tudo o que existe
V ( ) F ( )
17. Às vezes tenho a sensação de ver tudo claramente pela primeira vez
V ( ) F ( )
18. Amo sentir o perfume das flores na primavera tanto quanto rever um amigo querido
V ( ) F ( )
19. Com freqüência me dizem que vivo em outro mundo porque estou alheio ao que ocorre ao meu redor
V ( ) F ( )
20. Acredito em milagres
V ( ) F ( )
Resultado
• 14 pontos ou mais Você marcou o grau máximo de espiritualidade. Pode ser o próximo Dalai Lama.
• De 12 a 13 pontos Você tem bastante consciência espiritual.
• De 8 a 11 pontos Você está na média, como a maioria das pessoas.
• De 6 a 7 pontos Você só acredita vendo, tem pouca fé.
• De 1 a 5 pontos Você é um cético, não acredita em nada que não possa ser provado.
Fonte: Robert Cloninger/Revista Time
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