Sofrimento,
resiliência e espiritualidade
(Por
IHU On-Line – 28/10/2007. Entrevistada: Susana Rocca)
"O
paradigma da resiliência propõe
uma mudança de ótica, centrando a observação nas capacidades, dos indivíduos e grupos, de resistir e refazer-se após
experiências de grandes sofrimentos. Em lugar de focar a observação nas
fraquezas, sintomas, doenças, carências, tenta-se descobrir quais são os
chamados “fatores de proteção” e os “pilares de resiliência”, isto é, as
forças positivas do ambiente circundante e as capacidades pessoais para reagir
e superar as adversidades da vida, a fim de fomentá-las e promovê-las",
afirma Susana Rocca*, em entrevista ao Instituto Humanitas Unisinos On-Line.
- Entrevista -
IHU On-Line - Qual é
a principal mudança de paradigma sugerida pela resiliência, do ponto de vista
da Psicologia? O que muda em relação ao olhar freudiano da psicanálise?
Susana Rocca - A resiliência,
entendida como a capacidade de superar as situações adversas, é um esforço do
ser humano de todos os tempos. As contribuições de Freud e a
psicanálise, especialmente os estudos do inconsciente e do desenvolvimento
psicossexual, ajudaram a pesquisar a vulnerabilidade do ser humano, os efeitos
negativos e as repercussões traumáticas após certos fatores adversos ou
situações críticas, abrindo espaço a análise das possibilidades ou não
terapêuticas.
Nas
últimas décadas, porém, alguns pesquisadores observaram indivíduos e grupos
que, sendo expostos a situações traumáticas, pessoais, familiares e sociais,
conseguiam desenvolver-se bem e continuar crescendo, apesar desses
acontecimentos adversos. Até observou-se que algumas crianças, adolescentes e
adultos, não só são capazes de continuar projetando-se no futuro, mas também de
aprender e sair fortalecidos com as adversidades ou situações traumáticas.
O
paradigma da resiliência, sem desconhecer a relevância dos estudos anteriores,
propõe uma mudança de ótica, centrando a observação nas capacidades, dos
indivíduos e grupos, de resistir e refazer-se após experiências de grandes
sofrimentos. Em lugar de focar a observação nas fraquezas, sintomas, doenças,
carências, tenta-se descobrir quais são os chamados “fatores de proteção” e os
“pilares de resiliência”, isto é, as forças positivas do ambiente circundante e
as capacidades pessoais para reagir e superar as adversidades da vida, a fim de
fomentá-las e promovê-las.
IHU On-Line - Qual é
o papel da crença num ser superior para a superação de situações difíceis? Em
que sentido as religiões e a fé influenciam no processo de resiliência e nessa
“quebra” da lógica do trauma?
Susana Rocca - As religiões sempre
tentaram dar uma resposta, uma interpretação, e uma ajuda para a
transignificação dos limites, um sentido para poder lidar e superar as
situações adversas: escassez, catástrofes, carências, as forças ambientais ou
as ações violentas, negativas, ou de sofrimento que atingem desde fora, assim
como sofrimentos interiores.
Respondem
a duas perguntas que acompanham o contato com o mal e o sofrimento: o porquê e
o para quê. Isto é: o que aconteceu, qual é a origem ou o motivo do mal, assim
como a pergunta pelo sentido e por como (re)fazer-se, como (re)construir-se
após essa situação adversa e traumática. Diante do sentimento de desvalimento,
de desproteção, e de necessidade de ajuda que o ser humano tem diante do
sofrimento, a crença num ser superior, ou em vários, constitui uma força de
sustento, recuperação e de proteção, atinge a solidão interior de quem padece a
dor, motivando um vínculo com um Outro transcendente com quem se pode contar e
se sentir seguro; propicia uma compreensão ou interpretação do que está
acontecendo, favorecendo a busca de sentido em vistas a superação da situação
traumática e do sofrimento.
É
por isso que tantas vezes até pessoas que não se consideram religiosas, em
momentos de crise, doença, ou problemas graves, procuram e encontram, na fé e
na religião, consolo, conforto, apoio, e até força e sentido para seguir
adiante. Constata-se que, para muitos, a crença num ser superior, o fato de
poder contar com sua presença e ajuda, é um pilar fundamental para a superação,
especialmente diante das situações difíceis, violência, acidente, luto, ou
doença terminal, entre outras.
IHU On-Line - Quais
são os principais fatores de proteção e os principais pilares de resiliência do
jovem latino-americano?
Susana Rocca - Em primeiro lugar,
se destaca o papel de uma ou mais figuras significativas que garantem uma
acolhida e aceitação incondicional. Este fator de proteção é válido para toda
idade e cultura. Ter pessoas de confiança com quem pode contar, ter um entorno
favorável, assim como uma rede de apoio à qual recorrer, são fatores que
propiciam proteção (família, instituição educativa, organizações sociais,
políticas ou religiosas). Olhando para a América Latina, para promover a
resiliência, faltam ainda políticas públicas suficientes que contemplem as
necessidades da juventude, começando pelas necessidades físicas básicas.
Dentre
as aptidões ou qualidades pessoais que podem ser consideradas pilares de
resiliência, podemos citar: a necessidade de ter uma boa auto-estima; a
capacidade de sociabilidade e estabelecimento de vínculos; assumir
responsabilidades suficientemente claras, elevadas e compatíveis com a situação
desse ou desses jovens; o protagonismo, a iniciativa e a criatividade para
resolver situações adversas; o senso de humor, e a importância fundamental do
sentido da vida vinculado à elaboração de um projeto de vida, ou a vida
espiritual ou religiosa.
Se
pensarmos nos pilares de resiliência comunitária ou social, isto é, nas
capacidades que uma comunidade, uma cidade ou um povo tem de se recompor após
um desastre ou calamidade deveríamos citar a solidariedade comunitária; a
honestidade estatal ou administrativa; a identidade cultural; o humor social; e
a auto-estima coletiva.
IHU On-Line - A vida
em comunidade, no caso de pertencimento religioso, contribui para o processo da
resiliência?
Susana Rocca - A fé, vivida como
confiança em um Deus presente e força que ajuda a superar o sofrimento, parece
ser uma chave no desenvolvimento das capacidades de resiliência. Daí as
implicâncias para o contexto religioso, lugar privilegiado para acompanhar esse
processo de superação das adversidades, desafiando os estudiosos e a comunidade
de fé a redimensionar com esta ótica tantos recursos pessoais e comunitários
que podem ser oferecidos por meio das celebrações, dos variados serviços e
atividades religiosas.
Quanto
à vida de grupo, basta ver o apoio que oferecem os grupos de pessoas que se
reúnem para elaborar e ajudar-se a superar situações traumáticas semelhantes
(fazendas de recuperação, grupos de enlutados, portadores de doenças crônicas
específicas etc.). No caso da juventude, a formação de grupos (tribos)
constitui uma singular força de apoio que favorece os vínculos, o sentimento de
pertença e a busca da identidade. O engajamento com outros para superar
adversidades e a união para lutar por causas sociais comuns, sob o enfoque da
resiliência, podem ser instrumentos propícios para promover também as
capacidades próprias de lidar e superar as situações traumáticas.
IHU On-Line - Qual é a crítica que você faria à questão da resiliência?
IHU On-Line - Qual é a crítica que você faria à questão da resiliência?
Susana Rocca - Há diferentes pontos
que poderíamos abordar. Mesmo que no Brasil ainda não aconteça, nos países que
trabalham há mais anos o tema existe o risco da banalização do conceito de
resiliência, virando, na sociedade de consumo, uma categoria-chavão para a publicidade,
para garantir uma maior venda de um produto no mercado. Outro enfoque
distorcido seria dividir as pessoas e os povos como resilientes e não
resilientes, gerando, assim, uma forma de exclusão.
Creio
que é importante pensar na resiliência como um enfoque científico e
transdisciplinar que visa a contribuir na superação das dificuldades pessoais e
coletivas que ferem a vida. Mas a promoção da resiliência não supõe uma visão
ingênua ou eufórica que nega as sérias problemáticas que causam as feridas da vida
dos seres humanos e do ambiente. Há muitas realidades traumáticas, diante das
quais é preciso garantir mudanças pessoais, sociais e estruturais. Não se
pretende trabalhar somente para evitar as conseqüências e efeitos negativos.
É
preciso garantir o trabalho contra as causas que ocasionam esses danos. Penso
especialmente nas desigualdades sociais, a injustiça, a corrupção, a miséria, a
guerra, as diferentes formas de violência e opressão. Nesse sentido, promover a
resiliência é também lutar por políticas públicas que garantam os direitos
fundamentais das pessoas: necessidades físicas básicas: segurança, casa,
alimentação, saúde, educação, emprego.
IHU On-Line -
Considerando o cenário pobre e violento da América Latina, quais são as
limitações no plano da ética e da constituição social que envolvem o conceito
de resiliência?
Susana Rocca - Pensando no nosso
contexto latino-americano, há um desafio que nos preocupa seriamente. Que
alternativas têm as crianças e os adolescentes que nascem em contextos mais desprovidos
de segurança e sem as necessidades básicas satisfeitas? Como potencializar
recursos para favorecer a resiliência diante de tantos e tantos fatores
estruturais de miséria, violência e privação? Como favorecer as redes de apoio
social?
Pois
se sabe que a resiliência se potencializa também graças às ajudas de outros e
das redes. Tem a ver com os fatores de proteção que se encontram disponíveis no
meio social e que ajudam para conseguir para superação. As pessoas não “são”
resilientes, já que as capacidades não são ilimitadas nem definitivas. Não
existem seres “invulneráveis”, como se chamou no início às crianças que
mostravam grande capacidade de superação. A resiliência é um estado que varia
conforme a idade do sujeito, conforme o conjunto de fatores de risco padecidos
ao longo da sua história.
Relaciona-se
também às características de personalidade e a também às escolhas livres de
cada um. A resiliência se “tece” ao longo da vida e é dinâmica. Por isso, não
se “é” resiliente, mas se “está” resiliente. Alguém pode agir com atitudes
resilientes diante de graves situações, porém, pelo “efeito gatilho”, pode ter
uma queda significativa na capacidade de superação após um acontecimento de
outra índole ou, aparentemente, de menor teor traumático para outras pessoas.
Pode afirmar-se que a superação de situações traumáticas faz crescer as
capacidades de resiliência.
Pode
constatar-se que, para algumas pessoas, determinadas adversidades chegam a
contribuir no amadurecimento como ser humano, na descoberta de um sentido mais
profundo dado às coisas e a vida. Porém, é preciso esclarecer que as
adversidades isoladamente não são necessariamente capazes de promover a
resiliência. Finalmente, diria que há uma referência clara às questões
éticas num sentido duplo, pois, para falar em resiliência, é preciso considerar
estratégias de superação que contemplem não só o bem próprio, mas também o bem
alheio.
Num
contexto de pobreza, desemprego, violência, corrupção e pressões, encontram-se
jovens que conseguem vencer dificuldades com aparente sucesso. O preço, porém,
é compactuar com situações prejudiciais para outros (por exemplo, corrupção,
tráfico). Por isso, devem ser pensadas formas de superação que respeitem o
próximo e o bem comum.
IHU On-Line - É
possível que alguém se torne resiliente sem uma filosofia de vida, sem um
sentido maior que norteie sua existência?
Susana Rocca - Na maioria dos
estudos e pesquisas sobre o tema, se fala da importância da filosofia de vida,
de ter um sentido para viver ou por quem viver. Outros destacam a relevância de
ter uma convicção religiosa, um sentido transcendente, uma fé, uma crença
espiritual. Mas nem todos os autores abordam e desenvolvem da mesma forma estes
aspectos. Alguns, por exemplo, analisam a importância da busca de sentido, contudo
não citam ou fazem pouca menção ao tema religioso.
Não
conheço nenhum autor que tenha minimizado a importância da busca de um sentido
de vida e de um sentido para superar a adversidade. Inclusive, já antes de se
desenvolver as pesquisas sobre a importância do sentido como pilar de
resiliência, o psicólogo vienês, Vicktor E. Frankl criou uma nova abordagem
terapêutica através do que denominou a “logoterapia”, isto é, a cura pela busca
de sentido.
IHU On-Line - O que a
sua experiência no serviço de atendimento espiritual do IHU lhe ensina sobre a
construção da resiliência entre jovens universitários?
Susana Rocca - A maior procura do
serviço de atendimento acontece diante de relacionamentos que acabam, doença ou
morte de pessoas queridas, crise de medo, depressão, problemas econômicos, e
inquietações existenciais e espirituais. Tanto nos atendimentos presenciais
quanto nas consultas on-line e os pedidos de oração, que nos chegam dos mais
variados lugares do país, há algo em comum: uma grande necessidade de acolhida
e escuta.
Num
mundo onde prima a correria, os sentimentos de vulnerabilidade têm pouco espaço
para serem partilhados. Diria que também é papel das instituições formativas o
cuidado integral dos acadêmicos. Nesse sentido, creio que é importante detectar
as necessidades e ver, com criatividade, que iniciativas podemos assumir para
contribuir no crescimento e cuidado integral das pessoas, promovendo a
resiliência tanto pessoal quanto comunitária.
Chama-me
bastante atenção a procura e os efeitos dessa nova forma de socialização que
são os vínculos on-line, tanto os serviços personalizados quanto as comunidades
virtuais. Talvez estejamos frente a novas maneiras de contribuir no
“empoderamento” das pessoas e na promoção das suas capacidades resilientes. A
experiência e a pesquisa nos irão mostrando até que ponto isso é ou não
possível.
* Sobre a Entrevistada
Susana María Rocca Larrosa possui graduação em Psicologia, pela Universidad Catolica del Uruguay, e Especialização em Aconselhamento e Psicologia Pastoral, pela Escola Superior de Teologia. Cursa Mestrado em Teologia Prática na EST. Dedica-se ao trabalho pastoral há mais de 25 anos no Uruguai, na Argentina e no Brasil. É coordenadora dos Serviços de Atendimento Espiritual presencial e on-line e responsável pelos Encontros de Ética, no Instituto Humanitas Unisinos - IHU. Tendo aprofundado o tema da resiliência, nos últimos anos participa e coordena eventos, assim como também assessora grupos interessados no assunto, em âmbito regional. O tema de estudo e da pesquisa do mestrado é “Espiritualidade e resiliência em juventude: a influência da religiosidade no desenvolvimento da resiliência”. Junto a Lothar Hoch, é organizadora do livro Sofrimento, resiliência e fé: implicações para as relações de cuidado(São Leopoldo: Sinodal, 2007).
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