A importância da espiritualidade para a saúde
(Por *Leonardo
Boff, JB on-line, 18/11/2013)
Via de regra todos os operadores de saúde
foram moldados pelo paradigma científico da modernidade, que operou uma
separação drástica entre corpo e mente e entre ser humano e natureza. Criou as
muitas especialidades que tantos benefícios trouxeram para o diagnóstico das
enfermidades e também para as formas de cura.
Reconhecido este mérito, não se pode esquecer
que se perdeu a visão de totalidade: o ser humano inserido no todo maior da
sociedade, da natureza e das energias cósmicas e a doença como uma fratura
nesta totalidade e a cura como uma reintegração nela.
Há uma instância em nós que responde pelo
cultivo desta totalidade, que zela pelo Eixo estruturador de nossa vida: é a
dimensão do espírito. De espírito vem espiritualidade. Espiritualidade é o
cultivo daquilo que é próprio do espírito, que é sua capacidade de projetar
visões unificadoras, de relacionar tudo com tudo, de ligar e religar todas as
coisas entre si e com a Fonte Originária de todo ser.
Se espírito é relação e vida, seu oposto não
é matéria e corpo mas a morte como ausência de relação. Nesta acepção,
espiritualidade é toda atitude e atividade que favorece a expansão da vida, a
relação consciente, a comunhão aberta, a subjetividade profunda e a
transcendência como modo de ser, sempre disposto a novas experiências e a novos
conhecimentos.
Neurobiólogos e estudiosos do cérebro
identificaram a base biológica da espiritualidade. Ela se situa no lobo frontal
do cérebro. Verificaram empiricamente que sempre que se captam os contextos
mais globais ou ocorre uma experiência significativa de totalidade ou também
quando que se abordam de forma existencial (não como objeto de estudo)
realidades últimas, carregadas de sentido e que produzem atitudes de veneração,
de devoção e de respeito, se verifica uma aceleração das vibrações em hertz dos
neurônios aí localizados.
Chamaram a este fenômeno de “ponto Deus” no
cérebro ou da emergência da “mente mística” (Zohar, QS: Inteligência
espiritual, 2004). Trata-se de uma espécie de órgão interior pelo qual se capta
a presença do Inefável dentro da realidade.
Este fato constitui uma vantagem evolutiva do
ser humano que, enquanto homem-espírito, percebe a Realidade Fontal sustentando
todas as coisas. Dá-se conta de que pode, surpreendentemente,
entabular um diálogo e buscar uma comunhão íntima com ela. Tal possibilidade o
dignifica, pois o espiritualiza e o leva a graus mais altos de percepção do Elo
que liga e religa todas as coisas. Sente-se inserido no Todo.
Este “ponto Deus” se revela por valores
intangíveis como mais compaixão, mais solidariedade, mais sentido de respeito e
de dignidade. Despertar este “ponto Deus”, tirar as cinzas que uma cultura
demasiadamente racionalista e materialista o cobriu, é permitir que a
espiritualidade aflore na vida das pessoas.
No termo, espiritualidade não é pensar Deus
mas sentir Deus mediante este órgão interior e fazer a experiência de sua
presença e atuação a partir do coração. Ele é percebido como entusiasmo (em
grego significa ter um deus dentro) que nos toma e nos faz saudáveis e nos dá a
vontade de viver e de criar continuamente sentidos de existir.
Que importância emprestamos a esta dimensão
espiritual no cuidado da saúde e da doença?
A espiritualidade possui uma força
curativa própria.
Não se trata de forma nenhuma de algo mágico
e esotérico. Trata-se de potenciar aquelas energias que são próprias da
dimensão espiritual tão válidas como a inteligência, a libido, o poder, o afeto
entre outras dimensões do humano. Estas energias são altamente positivas como
amar a vida, abrir-se ao demais, estabelecer laços de fraternidade e de
solidariedade, ser capaz de perdão, de misericórdia e de indignação face às
injustiças deste mundo [...].
Além de reconhecer todo o valor das terapias
conhecidas existe ainda um supplément d’ame como diriam os franceses. Ela quer
sinalizar um complemento daquilo que já existe mas que o reforça e enriquece
com fatores oriundos de outra fonte de cura. O modelo estabelecido de medicina
não detém, por certo, o monopólio do diagnóstico e da cura. É aqui que encontra
o seu lugar a espiritualidade.
A espiritualidade reforça na pessoa, em
primeiro lugar, a confiança nas energias regenerativas da vida, na competência
do médico/a e no cuidado diligente ou do enfermeiro/a. Sabemos pela psicologia
do profundo e da transpessoal, do valor terapêutico da confiança na condução normal
da vida. Confiar significa fundamentalmente afirmar: a vida tem sentido, ela
vale a pena, ela detém uma energia interna que a autoalimenta, ela é preciosa.
Essa confiança pertence a uma visão espiritual do mundo.
Pertence à espiritualidade a convicção de que
a realidade que captamos é maior do que as análises nos dizem. Podemos ter
acesso a ela pelos sentidos interiores, pela intuição e pelos secretos caminhos
da razão cordial. Percebe-se que há uma ordem subjacente à ordem sensível, como
o sustentava sempre o grande físico quântico, Prêmio Nobel David Bohm, aluno
predileto de Einstein.
Esta ordem subjacente responde pelas ordens
visíveis, e ela sempre pode nos trazer surpresas. Não raro, os próprios
médicos/as se surpreendem com a rapidez com que alguém se recupera, ou mesmo
como situações, normalmente dadas como irreversíveis, regridem e acabam levando
à cura. No fundo é crer que o invisível e o imponderável são parte do visível e
do previsível.
Pertence também ao mundo espiritual a
esperança imorredoura de que a vida não termina na morte, mas se transfigura
através dela. Nossos sonhos de voltar à vida normal deslancham energias
positivas que contribuem para a regeneração da vida enferma.
Força maior, entretanto, é a fé de sentir-se
na palma da mão de Deus. Entregar-se, confiadamente, à sua vontade, desejar
ardentemente a cura mas também acolher serenamente sua vontade de chamar-nos
para si: eis a presença da energia espiritual. Não morremos, Deus vem nos
buscar e nos levar para onde pertencemos desde sempre, para a sua Casa e para o
seu convívio. Tais convicções espirituais funcionam como fontes de água viva,
geradoras de cura e de potência de vida. É o fruto da espiritualidade.
* Leonardo Boff, teólogo e filósofo, é também
escritor. Junto com Jean-Yves Leloup e outros, escreveu ‘Espírito e saúde’
(Vozes, 2007).